Neste primeiro texto, apresentaremos algumas notas introdutórias sobre o surgimento da Análise do Discurso, mostrando desde o seu nascimento até alguns conceitos trabalhados na atualidade. Este trecho faz parte da minha Monografia, e acredito ser relevante pelo fato de apresentar de forma clara e concisa alguns princípios fundadores desse aporte teórico. Assim, os menos familiarizados podem passar a conhecer um pouco melhor essa disciplina que, atualmente, vem conquistando inúmeros pesquisadores no Brasil.
A Análise do Discurso
iniciou-se na França, na da década de 60, com as publicações da Revista
Langages, nº13, de Jean Dubois, em 1969, e do livro Análise automática do discurso, de Michel Pêcheux, também em 1969. A Análise do Discurso
caracteriza-se como uma “transdisciplina” de interpretação que busca
compreender o processo que leva à construção dos sentidos, pensando na relação
entre a língua, discurso e ideologia. De acordo com Orlandi (2007, p. 17), “o
discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e
ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os
sujeitos”.
Para os analistas do
discurso, o que interessa não é o texto fechado em si, mas toda sua
exterioridade, ou seja, as condições externas (história, língua, ideologia,
entre outros fatores) que levaram à produção dos discursos, numa relação de
interdependência para a constituição e compreensão dos sentidos. Sob esses
aspectos, tem-se a noção de condições de produção, como bem definem Charaudeau
e Maingueneau (2004, p. 115):
... o sujeito falante é sempre
parcialmente sobredeterminado pelos saberes, crenças e valores que circulam no
grupo social ao qual pertence ou ao qual se refere, mas ele é igualmente
sobredeterminado pelos dispositivos de comunicação nos quais se insere para
falar e que lhe impõem certos lugares, certos papéis e comportamentos.
Sendo assim, ser sujeito
na cadeia dos sentidos é estar sujeito à língua e à história, ou seja, é estar
ideologicamente interpelado, por isso o aspecto sócio-histórico não deve ser
desvinculado. Brandão (2002, p.63) afirma que:
… o específico da
ideologia é constituir indivíduos concretos em sujeitos. Sujeitos
que implicam uma dimensão social mesmo quando no mais íntimo de suas
consciências realizam opções morais e escolhem valores que orientam sua ação individual.
Nesse sentido, as condições de produção compreendem os sujeitos e a
situação e, conforme aponta Orlandi (2007, p.35), é pela maneira como nos
inscrevemos na língua e na história que os sentidos são determinados, ou seja,
é por isso que eles significam e não por nossa vontade.
O discurso é o lugar onde mais se presentificam as ideologias, sendo
assim, para se pensar o discurso, é preciso pensar a questão da ideologia
passando pela linguagem, pois é tão e somente por tais aspectos que o sujeito
se constitui como tal, como afirma Barros (1999 p. 2-3): “O sujeito perde o
papel do centro e é substituído por diferentes vozes sociais, que fazem dele um
sujeito histórico e ideológico”.
O sujeito do discurso é materialmente dividido, tanto pela ordem da
exterioridade (ideologia) quanto pela ordem da interioridade (inconsciente) e
se constitui a partir da sua relação com o Outro. Assim, o indivíduo se submete
à língua e à história para se constituir enquanto sujeito. FREGONEZI (2006, p.
31) defende a ideia de que é pela linguagem que o sujeito é ao mesmo tempo
constituído e falado, ou seja, ao produzir um discurso com a finalidade de
interagir socialmente, ele instaura um acontecimento único, construindo assim,
o processo enunciativo e, consequentemente, as significações da linguagem e do
mundo à sua volta.
Sob esses aspectos, Orlandi (2007, p.57) aponta para o fato de que o
sujeito representa uma contradição: “(...) é um sujeito ao mesmo tempo livre e
submisso. Ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas:
pode tudo dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la”. Dessa forma, interpelado pela história e pela
ideologia, Mussalim (2009, p.110) afirma que, inconscientemente, o sujeito é
levado a ocupar seu lugar em determinada formação social e enunciar o que lhe é
possível a partir do lugar que ocupa, ou seja, são as formações discursivas que
gerenciam esse processo enunciativo.
As formações discursivas são conjuntos de restrições semânticas que gerenciam
o funcionamento do discurso, ou seja, os diferentes sentidos que se produz a
partir de diferentes posicionamentos discursivos e ideológicos. Como
exemplifica Orlandi (2007, p. 45):
É pela formação
discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes
sentidos. Palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem
em formações discursivas diferentes. Por exemplo, a palavra “terra” não
significa o mesmo para um índio, para um agricultor sem terra e para um grande
proprietário rural. Ela significa diferente se a escrevemos com letra maiúscula
Terra ou com minúscula terra etc. Todos esses usos se dão em condições de
produção diferentes e podem ser referidos a diferentes formações discursivas. E
isso define em grande parte o trabalho do analista: observando as condições de
produção e verificando o funcionamento da memória, ele deve remeter o dizer a
uma formação discursiva (e não outra) para compreender o sentido que ali está
dito.
Se as palavras mudam de
sentido conforme a posição ideológica daqueles que as empregam, pode-se
apreender então, que os sentidos não existem em sua gênese, mas são
constituídos juntamente com o próprio discurso e com os outros discursos
historicamente construídos. Dessa forma, ao se mudar o lugar social-ideológico,
consequentemente, mudam-se os efeitos de sentido.
Foucault, em seu livro Arqueologia do saber (1969, p. 43),
denomina que as formações discursivas são um conjunto de enunciados que podem
ser associados a um mesmo sistema de regras historicamente determinado e que
são nos diferentes discursos que podemos observar as regularidades discursivas.
Já o conceito de formação discursiva em Pêcheux (1975) deriva do conceito de
formação discursiva de Foucault, no entanto, Pêcheux introduz o elemento
ideologia a este conceito e afirma que os discursos são organizados a partir de
um posicionamento ideológico, além de possuírem caráter heterogêneo.
A partir do caráter
ideológico e heterogêneo, Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 241) postulam que
são nas formações discursivas que se operam o “assujeitamento” e a
“interpelação” do sujeito como sujeito ideológico. Assim, no final da década de
70, a
noção de formação discursiva aparece indissociável do interdiscurso que,
conforme eles apontam, é o lugar no qual se constituem os objetos e a coerência
dos enunciados que provêm de uma formação discursiva.
Numa tentativa, ainda que inocente, de simplificar, pode-se dizer que uma
formação discursiva sempre dialogará com mais de um discurso e tal processo não
se dá aleatoriamente, ou seja, uma formação discursiva elege a outra com a qual
ela vai dialogar. Nesse sentido, os já-ditos vão sendo ressignificados e acabam
remetendo a outros processos enunciativos. Enfim, o processo de retomada dos
dizeres é o que torna possível apreender, nas formações discursivas, os
atravessamentos de outras formações discursivas.
Orlandi (2007, p.32) faz algumas observações acerca do interdiscurso,
que nos permite remeter o dizer a toda uma filiação de dizeres, a uma memória,
e a identificá-lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus
compromissos sociais e ideológicos. Lembrando, ainda, que:
O interdiscurso é
todo conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos.
Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E
isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito
específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando
para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras. (ORLANDI, 2007,
p.33-34)
Possenti (2009, p.157) comenta que as noções mais correntes de
interdiscurso exploram basicamente:
a)
os
múltiplos sentidos de um mesmo texto – o que remete à ideia de que há mais de
um discurso onde se poderia imaginar que há um só (o que estabelece um
parentesco sólido com a noção de polifonia);
b)
a
presença de um discurso no outro, que decorre de uma proximidade relevante
entre dois (ou mais) discursos, do que resulta que elementos do Outro
(discurso) estejam no discurso, sob variadas formas sintático-semânticas
(nominalizações, negações, topicalizações etc.), que se resumem, praticamente,
em termos discursivos, ao pré-construído.
Com
relação ao conceito de pré-construído, tem-se a ideia de que é ele quem vai
possibilitar a análise de como um enunciado se dá dentro de outros enunciados,
trazendo à tona a presença do Outro no discurso do Eu e retomando
acontecimentos discursivos partilhados socialmente. O pré-construído constitui-se
como algo que foi pensado antes, independentemente, em algum momento da
história e que se irrompe na materialidade linguística em outro momento,
passando a ressignificar em outros discursos. Nesse sentido, Possenti (2009, p.
159) diz que, para Maingueneau, o interdiscurso precede o discurso de fato, ou
seja, o Outro é desenhado a partir do Um.
Ao se trabalhar com a noção de pré-construído, parte-se da ideia de que
a memória discursiva é mais abrangente do que o pré-construído, pois é por meio
dela que os pré-construídos são mobilizados em determinados contextos e
produzem sentidos. Desse modo, Orlandi (2007, p.31) explicita que a memória
discursiva é “o saber discursivo que torna possível todo o dizer e que retorna
sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,
sustentando cada tomada de palavra”.
Assim, para compreender o funcionamento discursivo, é relevante
apreender a relação entre o pré-construído, o sujeito e a ideologia, tomando
todos esses elementos como constituintes do discurso e responsáveis pela
produção dos sentidos. Nesses aspectos, ao dizer, o sujeito significa,
constituindo-se tanto pela linguagem quanto pela sua relação com o mundo.
Tendo em vista que a condição da linguagem é a sua incompletude e que os
efeitos de sentido são constituídos a partir da interação e da posição do
sujeito ao serem afetados pelo discurso, compreende-se, assim, de acordo com
Brandão (2002, p.49-50), que a construção dos sentidos nunca está fechada em si
mesma, sempre é possível dizer de outra forma e tudo o que falamos relaciona-se
a várias outras coisas, inclusive àquelas silenciadas no discurso.
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